Encontro da Regional RS problematiza ensino remoto precarizado e excludente
A precarização do ensino remoto em tempos de pandemia e de
Reforma Administrativa foi o tema da segunda mesa do XXII Encontro da Regional
do ANDES-SN.
Ocorrido na noite da última sexta-feira, 6, o debate trouxe
a contribuição das professoras Vera Jacob (ADUFPA), Suzane Gonçalves (APROFURG)
e Amanda Moreira (UERJ), que comentaram sobre os principais impactos da adoção
açodada de um modelo remoto nas universidades brasileiras: intensificação das
rotinas de trabalho docente; carestia nos custos de vida – pois professores
passaram a arcar com equipamentos, pacotes de internet e demais adaptações
necessárias para transformarem suas casas em espaços de trabalho –; adoecimento
físico e mental em decorrência da sobrecarga, da infecção por Covid-19 ou da
perda de pessoas queridas; exclusão de milhares de estudantes que, não tendo
computador, um bom pacote de dados ou mesmo um cômodo em suas casas no qual
pudessem estudar com qualidade, foram penalizados em seus processos formativos;
e avanço de empresas privadas de tecnologia na área da educação. O evento
ocorreu de forma online e teve a participação de uma intérprete de libras.
Dados
expressivos
A pesquisa realizada pela Associação de Docentes da UERJ
(Asduerj) junto aos docentes de sua base ainda no ano de 2020 traz alguns dados
interessantes para se pensar os impactos do trabalho remoto na categoria
docente também de outras universidades. Quando questionados sobre o número
médio de horas que trabalham por dia, a maioria (44,7%) dos docentes respondeu
que trabalha de 9 a 12 horas – o que, na equação semanal, ultrapassa o máximo
de 40 horas previstas. O trabalho aos finais de semana também é realidade para
a maioria dos professores daquela instituição, já que 36,9% responderam que
frequentemente desempenham atividades laborais neste período, e 33,5%
sinalizaram que sempre as realizam. De uma forma geral, 71,6% dos 553 docentes que
responderam à pesquisa afirmaram que houve aumento de suas cargas de trabalho
durante a pandemia.
A produção acadêmica também foi um elemento avaliado na
pesquisa da Asduerj, a que 73% dos docentes responderam que, durante o ano de
2020, sentiram mudanças em seus padrões de produção acadêmica: 50% dos
respondentes afirmaram terem produzido menos, e 26% atestaram maior produção
neste período. Para Amanda Moreira, dirigente da Asduerj e docente do Instituto
de Aplicação da UERJ, é preciso problematizar as questões de gênero que
perpassam tais indicadores. Embora a pesquisa não faça esse recorte, a docente
lembra estudos divulgados pela organização Parent
in Science e que mostram a queda na produtividade de mulheres durante a
pandemia – muito em decorrência de ainda serem as principais responsáveis pelo
cuidado com a casa, com os filhos ou com familiares.
Outro elemento abordado na pesquisa foi a responsabilização
dos docentes por adquirirem equipamentos ou pacotes de dados melhores para dar
conta das aulas e demais atividades que agora passaram exclusivamente ao âmbito
virtual. A ampla maioria (84,5%) dos respondentes tiveram de fazer adaptação
nas condições de suas casas para desenvolver as atividades de trabalho. Desta
porcentagem, 53% compraram equipamentos ou mobiliários; 52% aumentaram ou
adquiriram um novo contrato de internet; 59% adaptaram os cômodos da
residência; 77% ajustaram a rotina da casa e 72% compartilharam equipamentos
com outros membros da família.
“Hoje temos um aprofundamento dos ataques à universidade
pública. O ensino remoto vem para fortalecer a privatização, aumentando e
incentivando a adesão a plataformas privadas de ensino online, precarizando a formação
e o trabalho docente, e oferecendo uma educação cada vez mais minimalista.
Estamos vivendo a lógica da uniformização, uberização e segregação do trabalho
por meio remoto, o que de fato prejudica muito a organização coletiva”, pondera
Amanda.
Arremedo
de ensino
Vera Jacob, docente da Adufpa e ex-vice-presidente do
ANDES-SN, critica o processo que levou à adesão do ensino remoto nas
universidades e escolas brasileiras durante a pandemia. Para ela, o que se fez
foi um arremedo de ensino, sem debate qualificado com as comunidades acadêmicas
e à revelia da realidade de pobreza e assimetria social vivenciada pela maior
parte da população brasileira.
“Essa experiência foi um fracasso total. O modelo aprofunda
a exclusão de pobres, negros, indígenas e crianças que vivem na periferia do
país. A maioria dos estudantes, tanto das escolas quanto das universidades públicas,
não conseguiu acompanhar as atividades síncronas, em especial por dificuldade
de acesso à internet e computador. A maioria acompanhava com muita dificuldade
por meio de celular, com uma internet que caía a todo momento (para aqueles que
conseguiam pagar)”, avalia Vera.
Ela também destaca as dificuldades impostas aos docentes
neste processo, a exemplo da oneração individual da categoria, que teve de
bancar, com seu próprio salário, planos de internet mais potentes, equipamentos
e contas mais altas de energia elétrica. “Estamos vivendo um processo de
estresse profundo entre os professores. É o que mais escutamos nas reuniões
online. O professor passou a trabalhar em horário ininterrupto, tendo que
responder chat, WhatsApp, etc. Aqui [na UFPA], colocaram 80 alunos numa sala. A
maioria expressiva desses alunos não participou das aulas, e isso tem gerado
uma série de conflitos”, comenta.
Para a docente, todo esse processo de sucateamento,
precarização e intensificação do trabalho observado em escolas e universidades
aproxima-se e, de certo modo, é utilizado como justificativa para a aprovação
de projetos nefastos como a Reforma Administrativa (PEC 32/20). Se hoje
atestamos que o ensino remoto alija milhares de estudantes do acesso ao
conhecimento, a Reforma, se aprovada, alijará muito mais pessoas, pois as
privará de direitos sociais como saúde, educação e previdência.
Com a Reforma, a própria carreira de docente federal entra
na iminência da extinção, e as universidades, até então frentes de resistência
aos desmandos, passarão a ser preenchidas com servidores terceirizados e
temporários, absolutamente submissos às determinações de chefias e governantes.
Os sindicatos, por sua vez, tendem a se esvaziar, assim como a autonomia
didática, política e financeira das instituições de ensino.
A Reforma Administrativa, contudo, não é um capítulo
separado, tendo sido antecedida de uma série de projetos responsáveis por
estrangular o orçamento das universidades. Exemplo maior citado por Vera foi a
aprovação da Emenda Constitucional 95, que aprofundou o corte nas políticas
sociais. Quando esse contexto anterior de precarização encontra uma pandemia e
a necessidade de transposição para o trabalho remoto, a alternativa que deveria
ser temporária passa a fazer brilhar os olhos dos empresários da educação e de
algumas reitorias país afora.
Isso porque, se a pandemia demandou temporariamente a
suspensão da presencialidade e a adoção da via remota, ela também mostrou que
esse tipo de ensino precarizado e excludente faz baixar os custos com a educação
no país, visto que docentes e estudantes são individualmente responsáveis por
garantir suas próprias condições de trabalho e formação. Assim, a possibilidade
de um ensino híbrido pós pandemia já tem sido sinalizada como a salvação da
lavoura para a crise orçamentária vivenciada pelas universidades.
“As escolas privadas que estão em ensino remoto reduziram
até a mensalidade, já que as famílias entram com contrapartida de internet,
equipamentos, luz, etc. Há uma redução dos gastos nesse modelo de ensino e esse
é um elemento importante que tem atraído reitores para defendê-lo. Isso aumenta
ainda mais o trabalho do professor, que tem que atender estudantes presenciais
e estudantes via internet. Só nos resta a luta. Temos que fazer com que essas
denúncias cheguem na população”, conclui Vera, ressaltando, também, a
importância de resistir às pressões para um retorno presencial ainda inseguro
nas instituições.
Professor
como tutor
Um dos desdobramentos de uma possível adoção irrestrita do
modelo de ensino híbrido é a fragilização cada vez maior da figura do
professor. Suzane Gonçalves, docente do Instituto de Educação da FURG, explica
que esse modelo tira dos professores sua capacidade de organização do trabalho
pedagógico e desmonta sua carreira, trazendo, em seu lugar, a figura do tutor. Para
ela, a adoção irrestrita do ensino híbrido era um objetivo do capital privado
há muito tempo. Agora, com a pandemia, veio o aval que faltava para tal
implementação, pois as universidades já teriam experimentado, obrigatoriamente,
esse novo modelo.
“[Nesse modelo] a figura do professor só aparece para fins
de avaliação. Quem trabalha são os tutores. Existem estudos que mostram que
muitos professores foram demitidos [em instituições que adotaram ensino
híbrido], e há professores também que escondem sua qualificação, como mestrado
e doutorado, para serem contratados como tutores, mantendo assim um vínculo de
trabalho que garanta seu sustento”, comenta Suzane, para quem os professores de
carreira tendem a se tornar cargos em extinção, caso esse modelo e o conjunto
de reformas em curso sejam implementados.
“Estamos vivenciando um processo que está articulado à Reforma
Administrativa, que é o fim do trabalho público e de determinadas carreiras.
Tivemos anteriormente a lei da terceirização, a reforma trabalhista, a reforma
da previdência e a Emenda Constitucional 95. Todas essas legislações vão
representando a flexibilização da jornada de trabalho, o aumento do trabalho
intermitente, a ausência das garantias trabalhistas e de aposentadoria, e o
agravamento da terceirização que, no setor público, tem aparecido inclusive
para as atividades-fim”, relembra a docente.
Ela ainda acrescenta, ao conjunto de leis e reformas já
aprovadas ou em curso, a Instrução Normativa (IN) 65, apresentada pelo governo
Bolsonaro em 2020, e que trata de autorizar o teletrabalho no serviço público.
Referenciado em metas, prazos e produtividade, o teletrabalho reduz os custos
para o Estado, onera os servidores através da responsabilidade individual por
garantir os meios necessários ao desenvolvimento das atividades, e pode agravar
processos de assédio moral e adoecimento psíquico. “Quanto mais instáveis são
as condições de trabalho, mais medo as pessoas têm de se sindicalizarem”,
reflete Suzane.
A mobilização de cada um e de cada uma dentro das
universidades é o caminho apontado pela docente para se contrapor a quem quer
fazer da pandemia uma porteira permanentemente aberta às tentativas de vender e
subalternizar o conhecimento público e as instituições nas quais ele é
produzido.
Programação
O XXII Encontro da Regional teve início no dia 23 de julho,
com a mesa “Luta contra a Reforma Administrativa” e seguiu nos dias 6 e 7 de
agosto. Em breve, publicaremos matéria com os principais encaminhamentos do
encontro.
A mesa da última sexta foi antecedida pela apresentação
cultural do projeto “Kako Xavier e a Tamborada”, cujo objetivo é apresentar um
pouco da música e da cultura negra do Rio Grande do Sul.
Texto
e prints: Bruna Homrich - Sedufsm