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Notícia

As condições de trabalho e os impactos na saúde docente: entrevista com Katia Reis

Neste mês, a ADUFPel-SSind começa a aplicar uma pesquisa sobre saúde docente elaborada pelo ANDES-SN. Para aprofundar o assunto e apontar como as instituições de ensino podem atuar na prevenção de doenças físicas e mentais, entrevistamos a pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Katia Reis, que coordena o Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador.


A pesquisadora aponta as consequências da precarização das condições de trabalho e do produtivismo como responsáveis pelo desgaste mental na categoria docente, o que muitas vezes leva ao cansaço extremo, estresse, ansiedade, esquecimento, frustração, nervosismo, angústia, insônia e depressão. Para ela, é necessário ligar o adoecimento no trabalho à falta de investimentos na educação superior do país, sendo "imprescindível que as lutas em defesa da educação pública assumam a saúde como ponto indubitável". Confira:

Como a saúde do/a trabalhador/a pode ser impactada pela organização e condições de trabalho?

Na saúde do trabalhador, parte-se sempre da premissa capital de que o trabalho é central no mundo social e na vida das pessoas, ou seja, ele (o trabalho) é um poderoso determinante sobre a saúde dos diversos grupos humanos. Outro importante pressuposto, para qualquer análise que se pretenda realizar sobre a saúde dos trabalhadores, diz respeito ao reconhecimento de que as relações sociais são determinadas pelo modo de produção econômico e social, conforme preconiza a corrente de pensamento do materialismo histórico na vertente de Karl Marx. Nessa perspectiva, assegura-se que a história do trabalho sob o capitalismo está marcada por um conjunto de transformações com consequências inesperadas para a saúde humana. Sem dúvida, uma das principais expressões atuais do capitalismo global é a precarização do trabalho e o adoecimento da subjetividade no trabalho. Outro importante aspecto, no que se refere aos traços do processo de precarização, é que no modo de produção capitalista o trabalho perde sentido como fator de realização das pessoas, já que degradam-se as relações sociais e humanas no processo de produção. É fato que a precariedade das condições de trabalho suscita a precariedade da vida com consequências para a saúde dos trabalhadores.


Assim, pode-se compreender o que acontece hoje com o trabalho dos docentes em universidades públicas, bem como de outros segmentos de trabalhadores. Considera-se que as transformações em curso no trabalho dos professores universitários geram alterações no modo de viver e sentir o próprio trabalho que precisam ser melhor conhecidas e se tornarem matéria de debate público dos docentes e suas organizações.


Voltemo-nos agora para a pesquisa em andamento no Rio de Janeiro realizado pelo grupo de pesquisa Sintheses (Estudos sobre Saúde, Sindicalismo, Trabalho e Educação), coordenado por mim. O estudo mostra que são muitos os problemas relacionados à organização e condições de trabalho em universidades públicas. Dentre eles, a precariedade das condições da infraestrutura física, sendo esta uma das razões de insatisfação profissional, tais como a falta de manutenção de equipamentos de sala de aula e que deveriam fornecer suporte didático aos docentes, sendo principais as condições de climatização do ambiente e a parte de manutenção elétrica predial. Curiosamente, alguns docentes referem-se a essa modalidade de problema como "sina de sala de aula", quer dizer, reportam a sorte e a fatalidade do trabalho, quando sabemos que se trata, na verdade, de falta de investimentos na educação superior do país.


No que concerne à saúde, as condições de trabalho inadequadas podem suscitar sofrimento, levando o professor a lançar mão, constantemente, de estratégias para enfrentamento das adversidades com impactos na saúde, sobretudo na área da saúde mental.

Como esse cenário se aplica à saúde docente, considerando que muitas vezes os impactos nesta categoria não estão tão relacionados a acidentes de trabalho, mas incidem de forma mais subjetiva sobre a saúde?

De fato, os estudos sobre "saúde docente" destacam a questão da saúde mental. Vejam que o processo de trabalho docente realiza-se, primordialmente, no âmbito das relações humanas e sociais, suscitando a produção de subjetividades e afetividades como características essenciais do trabalho docente. Professores estão sujeitos, o tempo todo, a vivenciarem problemas como conflitos interpessoais no trabalho.


Verifica-se que os fatores do processo de trabalho podem desencadear reflexos negativos na saúde com repercussões psíquicas causando síndromes depressivas ou manifestações de ansiedade, distúrbios do sono, mudanças do humor e do comportamento, até a síndrome de Burnout. Frise-se que a síndrome de burnout é definido, pela OMS (Organização Mundial de Saúde) como um processo iniciado com excessivos e prolongados níveis de estresse e tensão no trabalho. As características do processo de trabalho associadas às características das pessoas propiciam o aparecimento dos fatores multidimensionais da síndrome, sendo elas: exaustão emocional, distanciamento afetivo (despersonalização) e baixa realização profissional.


Ademais, é preciso levar em consideração que a aproximação com a realidade do trabalho docente nos tem mostrado que os professores acionam mecanismos de defesa individual para se defenderem da nocividade dos ambientes de trabalho. Vimos que esses docentes buscam saídas individuais, em detrimento daquilo que, na perspectiva da saúde do trabalhador é considerado essencial, que é a organização coletiva para defesa da saúde, como as comissões de saúde por locais de trabalho, conforme previsto em legislação específica.


Diante dos estudos e da constatação no plano empírico dos problemas, pode-se concluir que existe uma relação entre organização do trabalho docente em universidades e a saúde, o que demanda processos de acompanhamento e vigilância permanente por parte dos docentes, suas organizações, bem como de setores da universidades responsáveis pela saúde, como o SIASS (Subsistema Integrado de Atenção à Saúde do Servidor). Vale lembrar que pesquisas mostram que há prevalência de transtornos mentais comuns entre professores de nível superior, com destaque para a depressão e que tal situação pode acometer professores com menos de 35 anos de idade, podendo ser considerado um indicativo do processo de desgaste acelerado do trabalho que promove uma série de alterações negativas à saúde.


Lembremos ainda o conjunto de estudos que apontam para queixas e sintomas de maior prevalência relacionadas à saúde mental de professores, sendo eles: cansaço mental, estresse, ansiedade, esquecimento, frustração, nervosismo, angústia, insônia e depressão. Considere-se ainda o fato de que existe um escasso debate sobre o uso de estimulantes, por parte de professores, para se incitar a vigília, considerando a pressão por produtividade somada a sobrecarga de trabalho. O ponto que chama atenção diz respeito ao consumo de drogas lícitas e ilícitas por parte desta categoria profissional. Nesse sentido, é válido mencionar o consumo habitual de álcool entre professores universitários com episódios de consumo excessivo, devendo ser considerado um quadro preocupante.

De que forma a precarização no ambiente de trabalho, como o acúmulo de trabalho sofrido pelos docentes e o sistema de avaliação docente, afeta os/as trabalhadores/as?

Concordo com a ideia segundo a qual o acúmulo de tarefas e a intensificação do trabalho docente é um aspecto que merece atenção especial no que se refere à saúde. Vimos em nossos estudos que existe uma nova temporalidade do trabalho docente, já que professores trabalham à noite, nos feriados e finais de semana. Assim, não se pode falar em jornadas formais de trabalho como no passado, ou seja, quarenta horas semanais. Em termos concretos, existe uma invasão do espaço e do tempo de descanso pela tribulação do trabalho do professor que deveriam ser destinados ao lazer e repouso. Certamente são fatores que podem contribuir para o sofrimento e desgaste do docente.

Outro tópico merecedor de destaque e que sobressai em nossos estudos no que diz respeito à organização do tempo de trabalho do professor é o tema das tecnologias informacionais. Sabe-se que artefatos tecnológicos ampliam a possibilidade do dispêndio do tempo de descanso, comprometendo o tempo de recuperação, o que pode contribuir para o desencadeamento de exaustão física e mental. O uso contínuo de celulares, laptops e outras ferramentas contribuem para que esse trabalhador fique "ligado" e em conexão todo o tempo com o trabalho.


Quanto ao ponto da sua pergunta a respeito do sistema de avaliação docente, devemos nos reportar à reforma universitária brasileira que vem se consolidando por meio de leis e decretos aprovados desde a década de 1990, momento de aprofundamento da crise estrutural do capitalismo neoliberal. Essa reforma de Estado firma um novo modelo de organização das universidades públicas e instituiu em 2004 o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes) e no ano de 2007 o Programa de apoio a planos de reestruturação e expansão das universidades federais (Reuni), somente para citar duas políticas que causaram impacto no trabalho acadêmico. Quanto a esta última (Reuni), estabelece o crescimento numérico das universidades no Brasil e a abertura de novas vagas para alunos, sem a equivalente criação de vagas para docentes e o suficiente aporte de recursos. Esse conjunto de reformas contribuiu para o cenário de precarização do trabalho e intensificação do trabalho, constituindo-se como marca atual das universidades no país.

No que concerne à temática da organização do trabalho docente em universidade, chama a atenção, embora ainda pouco estudado, o problema do Assédio Moral, observa-se que o espaço acadêmico é propício à ocorrência de situações de assédio moral devido a ser um ambiente favorável à competitividade, sobretudo tendo em conta parâmetros de avaliação do trabalho docente, como aqueles procedentes dos órgãos de avaliação da pós-graduação, podendo levar ao chamado "produtivismo acadêmico".

Quais consequências à saúde e ao trabalho docente podem trazer as medidas implementadas pelo governo federal, como o contingenciamento de recursos, políticas de vagas docentes e discentes e terceirização?

Essa é uma questão bastante ampla e nesse sentido, penso que é importante afirmar resultados de estudos anteriores acerca das políticas de educação pública no Brasil e não somente na educação superior. Isso porque as políticas em educação, embora se apresentem como avançadas, pautam-se em uma compreensão restrita do que é gestão e do que é o próprio trabalho humano. O contexto em que o trabalho é realizado raramente é questionado. Existe uma racionalidade redutora das situações de trabalho que comumente se apresenta nas ações da gestão, comprometendo a finalidade social das instituições escolares e universitárias e repercutindo sobre a saúde de seus trabalhadores e trabalhadoras.

Entre essas políticas e, atendendo à sua pergunta, encontra-se a terceirização laboral em universidades públicas. Com efeito, a terceirização é uma forma de trabalho precário que possui diversas dimensões, entre elas, o adoecimento, os acidentes de trabalho e a fragilidade das organizações dos trabalhadores. Graça Druck nos lembra que os trabalhadores técnicos-administrativos, junto com outros grupos também em situação de precarização de relações de trabalho, como trabalhadores de limpeza, vigilância e portaria, estão no cerne do confronto contra o trabalho degradado nas universidades, mas com poucos estudos a respeito da saúde. Por certo, há uma ligação entre as formas precárias de trabalho e a desestruturação do papel do Estado no que diz respeito a sua atribuição constitucional de promover proteção social. A precarização social do trabalho deve ser compreendida como um processo econômico, social e político, que está dado por condições de insegurança, de fragmentação dos coletivos de trabalhadores e, sobretudo, da destituição do conteúdo social do trabalho.


Diante desse cenário, é imprescindível, que as lutas em defesa da educação pública assumam a saúde como ponto indubitável. Assim, o debate a respeito da saúde e da vida no trabalho assumem um lugar central. Além disso, tem-se o desafio de ampliar as lutas em prol da educação pública para outros setores da classe trabalhadora. Vive-se momentos de incertezas no Brasil: perseguição à reitores, com desfecho de suicídio e ainda, demissão de professores que precisam ser enfrentados pelo debate público e questionamento crítico e organizado em relação, especialmente, ao atual modelo de gestão pública e de Estado.

Sabemos que são poucas as universidades que possuem políticas direcionadas à saúde dos/as servidores/as. De que forma as instituições de ensino poderiam prevenir ou atuar sobre a saúde dos seus trabalhadores?

Logo no início da minha resposta, destaco um importante pressuposto teórico existente no campo da saúde do trabalhador que refere-se ao reconhecimento do trabalhador como como sujeito do conhecimento a respeito do seu próprio trabalho. De acordo com esse enfoque, os trabalhadores deixam de ocupar a posição de objeto de estudo para ocuparem a posição de sujeitos do conhecimento e da experiência, necessárias às mudanças nos ambientes laborais de modo a se promover saúde. Nesse escopo de compreensão, precisa ficar claro que o desenvolvimento de qualquer política ou ação voltadas à saúde dos trabalhadores precisam, seguramente, envolver os próprios trabalhadores e suas organizações.


Para tal, deve-se implantar ações de vigilância em saúde do trabalhador nos locais de trabalho. A ideia que queremos destacar é aquela segundo a qual se reconhece que os processos de vigilância em saúde do trabalhador - e a mitigação das causas da nocividade do trabalho - só vão ter sucesso efetivo quando acompanhada das condições objetivas para o exercício real da democracia e da cidadania nos ambientes de trabalho. De maneira que a participação venha a contribuir com as condições propícias para o diálogo e o debate coletivo.


Faz-se necessário considerar ainda que as organizações por locais de trabalho devem se realizar por meio da constituição de comissões de saúde eleitas diretamente pelos trabalhadores. Portanto, reconhecemos o grande valor dos locais de trabalho para a estruturação de uma política participativa de vigilância em saúde do trabalhador.


Vale lembrar de dois marcos importantes na história da saúde do trabalhador, referentes à temática das organizações por locais de trabalho. O primeiro foi a 2a Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador, realizada em 1994, já após a promulgação da lei 8.080, de 1990, que estabelece uma nova política de saúde com a preocupação de se garantirem ações de vigilância e fiscalização nas instituições públicas e privadas. Para tal, propõe a criação de comissões de saúde do trabalhador nos serviços públicos e privados, destacando a exigência de que o serviço público passasse a emitir a comunicação de acidente de trabalho (CAT). Recomenda ainda que a comissão de saúde do servidor público seja amplamente discutida nas bases da categoria em âmbitos federal, estadual e municipal, juntamente com seus sindicatos e representações. Essa comissão deve ser composta exclusivamente por servidores, eleitos por seus pares.


Registre-se que tais recomendações foram reforçadas na 3ª Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador - segundo marco importante -, realizada em 2005, quando se apontou para a necessidade de participação das entidades representativas dos trabalhadores do setor público na elaboração da norma regulamentadora de saúde do trabalhador no serviço público. Embora existam recomendações dessas conferências para que a legislação se aplique nas instituições públicas e privadas, não há a obrigatoriedade de que elas sejam efetivadas. Cabe ao Estado a sua normatização - e certamente o empenho dos trabalhadores do serviço público e dos gestores para que as indicações das conferências se tornem realidade. Por fim, no que diz respeito aos preceitos legais, em agosto de 2012 foi instituída a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (PNSTT), que é resultado do movimento coletivo de construção de uma política pública, confirmando assim a importância da participação como estratégia de fortalecimento do interesse comum.

As universidades estão preparadas para readaptar o/a professor/a afastado/a por adoecimento?

A readaptação é uma política voltada aos professores e demais servidores públicos que não leva em consideração o contexto onde o trabalho se realiza, suas condições e organização. O nosso estudo realizados no ano de 2013 ("Trabalho docente, readaptação e saúde: a experiência dos professores de uma universidade pública") mostrou que o desafio que está colocado para o campo da Saúde do trabalhador não é o investimento em políticas que buscam reinserir o trabalhador no ambiente que o adoeceu, mas sim, investir em ações que estimulem as mudanças na organização do trabalho, de modo participativo, incentivando a discussão democrática dos processos de trabalho em universidades e a sua relação com a saúde.


Repetimos, finalmente, a afirmativa de que é necessário (e urgente) "a adaptação do trabalho ao homem", e não o contrário. Porquanto, assumimos como premissa básica que as distintas formas de organização coletiva de trabalho docente são os elementos-chave para a defesa e promoção de saúde dos trabalhadores e trabalhadoras nos ambientes de trabalho em universidades públicas.


Assessoria ADUFPel


Foto: Arquivo pessoal da entrevistada

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