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Notícia

Daniel Amaro faz da arte resistência

Matéria publicada no Voz Docente nº 9.

Desde os tempos mais remotos, arte é também resistência. No Brasil, em época de escravidão, a capoeira, os ritmos, os tambores e a dança eram meios de resistir à opressão. Em anos de Ditadura Militar, foi uma das mais importantes formas de oposição ao regime, exercida por artistas, professores, intelectuais e produtores culturais.


Entre escravidão, ditadura e democracia, a arte não deixa de ser um instrumento de luta. Entre passado e presente, ela permanece como uma ferramenta fundamental que está presente em todos os processos culturais e políticos que formam a sociedade.  


Em Pelotas, um dos artistas que melhor representam a união de resistência e arte é o coreógrafo e dançarino Daniel Amaro. Há 20 anos são esses dois elementos que fundamentam todo o seu trabalho. E como ele define, resistir é “insistir em fazer uma dança que até pouco tempo não era considerada como dança, e marcar território”. 


O início de tudo

O fundador da Companhia de Dança Afro Daniel Amaro, de 48 anos, conta que a arte entrou em sua vida aos 7. Como um menino morador da Vila Castilho, área periférica de Pelotas, é fruto da geração black music, que ganhou espaço nos anos 70. A influência do ritmo e também do samba levaram-no a formar um grupo de dança no início da década de 1980, cuja estreia aconteceu no clube negro Fica Ahí Pra ir Dizendo. Um espaço cultural centenário, fundado em janeiro de 1921, criado para a promoção de encontros e construções culturais de raízes negras na cidade, cuja história é carregada de enfrentamento e ancestralidade. 


A partir daí sua carreira foi estabelecida e o levou a dançar em escolas de renome e a participar de outro grupo de dança, fundamentais para sua formação, até chegar à fundação da Companhia que leva seu nome. “Foi dessa forma que eu comecei minha trajetória na arte e vivo disso até hoje”, confidencia. 


A companhia foi criada tendo como proposta ser resistência e reivindicação. Isso aconteceu devido à inexistência ou baixa participação de negros e negras em escolas de dança da região. “Eu encontrava pessoas de classe média alta e maioria de pessoas brancas, ou os negros que dançavam eram poucos. No meu caso, dançava porque precisavam de homem, então nos davam uma bolsa [de estudo], mas no final do ano tinha que dançar de graça. Meninas negras, se tivessem, eram apenas uma ou duas.” 


Com o propósito de acolher essas pessoas que não encontravam espaço em outros lugares, surgiu a Cia de Dança profissional, inédita no município por ser completamente gratuita, em que dançarinos e dançarinas são pagos para dançar e têm figurinos, diárias e viagens garantidos pela escola. 


Hoje, completa 2 décadas de trajetória, 9 espetáculos montados e 42 cidades e 2 países percorridos. Por ela, passaram mais de 3 mil bailarinos periféricos, cujo requisito é não ter contato anterior com a dança, a não ser com a popular. O ingresso ocorre por audição, de 2 em 2 anos, ou carta-convite. 


Segundo Amaro, além de ter o braço artístico, com a produção de espetáculos, a Cia oferece aulas regulares, promove palestras, workshops, ensaia mestre-sala, porta-bandeira, porta-estandarte e comissão de frente para o carnaval e ainda desenvolve projetos sociais com meninas da Vila Castilho. 


Atualmente, é conceituada na cidade, mas nem sempre foi assim, como explica Daniel. “Nós vivemos num município e num estado muito racista. Hoje, eles respeitam a Companhia de Dança Daniel Amaro, mas eu me lembro que no início eles não respeitavam, achavam que não era dança propriamente dita, que dança afro não tinha técnica, que tinha técnica somente balé ou jazz”. 


Ancestralidade, religiosidade e resistência

No trabalho que desenvolve, dança, música, resistência, religiosidade e ancestralidade estão conectadas e são responsáveis por entrelaçar passado, presente e futuro. A dança de matriz africana é o centro de tudo isso, a qual ele classifica como afro-contemporânea. “Por mais contemporânea que ela seja, mais religiosa que ela seja, ela está não só ligada com a ancestralidade do passado, mas sim de nós estarmos fazendo uma ancestralidade presente, construindo um ponto de referência para o futuro”. 


Além disso, Amaro reforça que a Cia tem o compromisso de lembrar às pessoas que a dança afro tem, além de uma técnica e ancestralidade, algo que considera primordial: resistir para existir. De acordo com ele, “a dança de preto tem que estar em todos os lugares possíveis, no centro histórico, nas religiões de matriz africana, na periferia, nas charqueadas, onde seja. Embora o ser humano considere como territórios separatistas, porque tem gente que faz essa leitura, de que teatro é só para rico e a periferia é só para pobre, eu discordo. Eu acho que todos esses territórios têm que se comunicar e que a gente só consegue terminar com o racismo e com os preconceitos quando fizer com que as classes sociais se comuniquem e dialoguem. Essa é a nossa importância dentro da arte, fazer arte para resistir. Para resistir e mais, existir”. 


Dança dos Orixás

Em 2017, Daniel foi convidado pelo proprietário da Charqueada São João para ministrar oficinas de preparação corporal aos guias turísticos da casa. Na ocasião, o bailarino comentou que desenvolvia um curso de formação de matriz africana e que seria interessante direcioná-lo ao público. O curso tinha dez módulos e cinco modalidades de danças e, por sugestão do proprietário do local, foi proposta a inclusão de um espetáculo ao final de cada módulo. Entre conversas e opções de remodelar o curso, a Dança dos Orixás, que faz parte do terceiro módulo, foi transferida ao primeiro. Porém, o curso não recebeu inscrições e assim surgiu a ideia de produzir apenas o espetáculo. Em uma audição, os bailarinos foram selecionados e em quatro meses foi montado. 


A parceria entre a Charqueada São João e a Companhia de Dança Afro Daniel Amaro deu tão certo que a apresentação chegou à sua 15ª edição este ano. A ideia, segundo Amaro, é resgatar, por meio da dança, a herança deixada por homens e mulheres escravizados e ressignificar o local através dos negros contando a sua própria história. Não a partir do sofrimento, mas do legado. 


“As pessoas ficam encantadas e todos nós, responsáveis envolvidos nisso, ficamos muito felizes porque conseguimos ressignificar que lugar de preto é qualquer lugar. Não é só na favela, não é só na periferia. Eu faço uma reflexão: se nós não podemos entrar nas charqueadas, não podemos entrar no Guarany, no 7 de Abril, no mercado público, porque são todos lugares racistas. Lugares que tiveram contribuição para o preconceito racial na cidade de Pelotas”, ressalta. 


Ele reforça a importância de ter o passado como referência para a construção do presente. “Eu tenho que construir a minha história e a minha história hoje é que eu sou um homem livre, e, como eu sou um homem livre, eu posso escrever a minha história”.  Assessoria ADUFPel Fotos: Alan Miguel Gonçalves e Arquivo ADUFPel

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