ADUFPEL - Associação dos Docentes da Universidade Federal de Pelotas

Logo e Menu de Navegação

Andes Sindicato Nacional
A- A+

Notícia

Militarização na educação - expansão e consequências

Matéria publicada no jornalVoz Docente de 04/2022

A militarização do ensino público tem se espalhado cada vez mais pelo Brasil e alerta para uma realidade a ser enfrentada. Em 2021, o assunto voltou a ser pauta de discussão, quando o Ministério da Educação (MEC), em acordo com o Ministério da Defesa, anunciou a ampliação do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim), que permitiu a adesão de mais 74 instituições, em um país que já apresentava uma quantidade alarmante de escolas cívico-militares. 


O avanço do modelo, que dribla a legislação, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB) e os princípios constitucionais democráticos, ao transformar escolas públicas em militarizadas, tem sido defendido como uma “solução” fácil para os problemas enfrentados pelo ensino público. 


Isso foi o que ocorreu em Goiás, a partir do final da década de 1990, momento em que a expansão da militarização foi significativa no estado, muito beneficiada pela situação de precarização de algumas escolas estaduais, que chegavam ao seu limite, com altos índices de reprovação de alunos, indisciplina, sucateamento de equipamentos, escassez de materiais pedagógicos, falta de concursos e fragilização das relações de trabalho. 


O avanço aconteceu sob a gestão do ex-governador de, Marconi Perillo, do PSDB, (1999 a 2006 e 2011 a 2018). Entre 2001 e 2018, houve um salto de seis para 78 escolas militarizadas, sendo que, apenas entre 2015 e 2018, foram mais 51. 

Em um momento em que cresce o saudosismo à ditadura empresarial-militar e se consolidam políticas públicas pautadas pela violência e visão neoliberal e utilitarista da educação, a militarização de escolas públicas deve ser acompanhada com atenção. 


Ao contrário do que afirmam seus defensores, a militarização ultrapassa a redistribuição entre funções administrativas e pedagógicas dentro das escolas e o objetivo de trazer disciplina e ordem para os espaços de ensino. Conforme aponta o ANDES-SN, que posiciona-se contra o processo, as escolas militarizadas, além de promoverem a privatização da educação, contribuem para fortalecer concepções empreendedoras e domesticadoras de educação no interior das instituições.


Para abordar a história e consequências do projeto de incentivo à expansão das escolas cívico-militares, entrevistamos o professor do Instituto Federal de Goiás (IFG), Eduardo Junio Ferreira Santos. O docente é autor de uma dissertação que trata desses temas, estimulado pelo avanço do processo de militarização em Goiás, entre 2011 e 2012, quando acompanhou de perto, como militante, a resistência de estudantes e professores. Confira trechos da entrevista que está disponível, na íntegra, como episódio do podcast Viração


Viração: Quando se fala em uma escola militarizada, o que isso significa?

Eduardo Junio: Existem duas políticas que se distinguem quando a gente fala do envolvimento dos militares na educação no Brasil. Uma é a política de criação de escolas militares; a outra é a política de militarização de escolas públicas civis. As duas políticas têm relação entre si, até porque eu entendo que a militarização que a gente vive hoje das escolas públicas civis, em alguma medida, também é resultado de uma falta de atenção nossa em relação a essa política que os militares têm, de fazer a educação básica para os seus círculos, livre de interferência civil. 


São duas políticas diferentes e é importante entender isso porque, na maioria dos casos que a gente acompanha, hoje, quando se militariza uma escola pública civil regular eles passam a chamar essa escola de escola militar. Tentam fazer parecer que é a mesma coisa, mas o que a gente chama de militarização da escola pública é você pegar uma escola pública municipal ou estadual de Educação Básica em pleno funcionamento e entregar a gestão, que eles chamam de gestão disciplinar/administrativa, para tentar induzir as pessoas a pensar que existe uma dicotomia entre a gestão da escola e as práticas pedagógicas ou as práticas em sala de aula, mas não é isso que acontece. Então, você pega uma escola pública civil em pleno funcionamento e entrega para a gestão militar, seja da Polícia Militar - que é o que predomina -, de corpos de Bombeiros Militares ou de outros arranjos de corpos militares. 


Você entrega a gestão dessa escola, coloca os servidores públicos vinculados à pasta da Educação, a terem a sua chefia vinculada à Segurança Pública. É algo, desde o ponto de vista da administração pública, completamente irregular. O que nós temos hoje são vários modelos de militarização de escolas, várias formas de driblar a legislação, a LDB, os princípios constitucionais democráticos da educação do país para transformar essas escolas em escolas militarizadas. 


A gente sabe que atualmente temos escolas militares federais vinculadas ao exército. Essas escolas são elitizadas, digamos assim, porque atendem a um público específico, que é de filhos e dependentes de oficiais do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, numa condição de renda bem acima da média da população brasileira. As escolas têm um corpo de professores que são de oficiais das Forças Armadas e têm um corpo de professores da carreira da Educação Básica Técnica e Tecnológica, e recebem uma verba bem acima da média da educação pública em geral no país. São escolas que, historicamente, atendem a um público bem específico e elas justificam a sua existência, dentre várias coisas, de que é necessária uma escola especial para os filhos e dependentes de militares porque muitas vezes eles precisam se deslocar de uma cidade a outra e é salutar que seus filhos estudem dentro de uma mesma rede. 


Então, essas escolas são federais e elas foram usadas como uma espécie de vitrine para defender a militarização de escolas públicas, mas veja que a garantia fundamental dos resultados que eles apresentam e índices de aprovação em vestibulares ou notas, isso está muito vinculado ao financiamento que essas escolas têm, ao público que elas atendem, a sua estrutura, ao corpo de professores que é formado sobretudo de professores doutores. Tem toda uma estrutura nesse pequeno grupo de escolas, são muito poucas. Se eu não me engano, atualmente são 14 escolas.


Qual foi a primeira escola instalada no Brasil?

A primeira escola que deu origem a essa rede de escolas militares federais foi fundada no século 19, no Rio de Janeiro, com uma justificativa de assistência, de que era necessário ter uma escola para atender a essas pessoas que se identificavam com a pátria. Inicialmente, eles atendiam somente meninos, mas depois de 1990 eles passam a atender meninos e meninas. Em 1940, as polícias militares começaram a reivindicar também escolas militares para atender os filhos dos militares das polícias. Isso passa a ser reivindicação dos corpos militares porque, afinal de contas, se os militares oficiais das Forças Armadas tinham, eles também queriam uma escola para eles, que fosse pública, que poderia se pagar até uma taxa por ser uma escola especial, mas que seus filhos estudassem numa escola, digamos assim, melhor. Mas não só isso, há uma questão também justificada pelas concepções políticas dos militares no Brasil de que os seus filhos não se envolvam com civis, ou de uma política de manter uma cultura mais hermética dentro das forças armadas entre os militares. 


O que acontece é que essas escolas militares da polícia não chegam a todos os lugares, chegam principalmente em Minas, crescem muito em 1963 em 1964, antes do golpe. Depois, durante a ditadura, pausou um pouco a expansão. Na década de 90 e nos anos 2000, as escolas militares da Polícia Militar de Minas Gerais cresceram muito e, hoje, a gente tem mais ou menos 30. E na década de 90, de acordo com os documentos que a gente conseguiu levantar na pesquisa que fiz do mestrado, a gente tem a primeira militarização de uma escola pública.


Por que a população apoia tanto esse tipo de escola? 

Eu entendo que existe um elemento conservador de uma ideia de um resgate de uma educação conservadora marcadamente hierárquica. Agora, olhando para o caso de Goiás, a gente vê uma receita neoliberal aplicada na militarização, porque a pesquisa que eu desenvolvi no mestrado buscou fazer um mapeamento da militarização das escolas no Brasil. O que eu conheço mais de perto é o processo aqui em Goiás, que não está muito distante da realidade do resto do país também. 


A gente tinha na década de 90, nos anos 2000, um processo muito forte de desfinanciamento das escolas estaduais e isso reverbera na estrutura das escolas precarizadas, na falta de estrutura física, de professor, de concurso, na precarização da relação de trabalho dos professores, nas salas de aulas superlotadas, na falta de condição de levar a cabo uma educação minimamente de qualidade. Isso gera dificuldades de funcionamento e gera também problemas disciplinares. Defender uma escola democrática não é defender uma escola sem condições de funcionamento. A gente precisa de uma escola com uma disciplina necessária ao funcionamento dela, não uma disciplina pela disciplina, pela obediência. A gente precisa de uma escola que funcione a partir de determinadas regras que colaborem com o trabalho educativo na escola, que é completamente fora da lógica das escolas militarizadas, que é a obediência pela obediência, a regra pela regra, o culto à hierarquia e à personalidade autoritária. 


Em Goiás, a gente vivia um sucateamento total das escolas públicas e isso fomentou uma insatisfação legítima da população em relação às escolas, insatisfação das comunidades escolares também. Isso é um elemento importante porque, de forma superficial, o que essa receita neoliberal coloca? A gente boicota, desfinancia e elimina as possibilidades de funcionamento do serviço público e depois apresenta uma solução. A solução apresentada é a privatização. Aqui em Goiás, a solução apresentada foi a expansão da militarização das escolas, que também é um tipo de terceirização. Não é uma terceirização para um setor privado, mas ela coloca a escola para funcionar dentro da lógica privada, só que a lógica privada em um regime militarizado, porque afasta a gestão democrática, a transparência pública da gestão da escola. Coloca ela dentro de uma lógica administrativa do setor privado, mas com a gestão sendo feita por um grupo de militares.


Eu penso que esse boicote ao funcionamento da escola pública, esse boicote a um projeto democrático de escola, contém uma ideia de que " isso que não tá funcionando, então vamos tentar isso aqui que vai funcionar". Claro que as ideias conservadoras também têm um peso aí, mas eu acho que esse debate é muito mais complexo quando a gente pensa sobre esse saudosismo por uma escola hierárquica, uma escola que discrimina, apesar de que a nossa escola pública também nunca foi plenamente democrática. Então, querem uma escola mais antidemocrática, partindo de uma escola que não é democrática ainda.


O que podemos esperar de uma educação militarizada para a formação do cidadão do futuro?

Eu acho que um dos pontos é que a militarização da escola pública quebra com a lógica da gratuidade porque cobra-se taxas, quebra com a lógica da gestão democrática porque passa a ser uma lógica privada. Não há participação da comunidade e muito menos dos estudantes e interfere no trabalho do docente porque tira a sua autonomia. Aqui em Goiás, são inúmeras as notícias de interferência dentro da sala de aula em relação, por exemplo, à abordagem que o professor faz sobre determinado tema que é caro para eles, como, por exemplo, a violência policial. É o fim da gestão democrática ou deixar a escola muito mais antidemocrática ainda. A militarização enfraquece a lógica da escola pública. 


Outro ponto interessante, é que as escolas autenticamente militares atendem a um público de filhos e dependentes de militares. A interação hierárquica no interior dessas escolas é diferente, então até mesmo as escolas militares vão oferecer uma educação menos abusiva  contra os seus alunos do que as escolas militarizadas. Se você pegar a escola de uma periferia de uma cidade e colocar um militar para fazer a gestão, que aborda o estudante preto na esquina, é diferente do militar que conduz uma escola militar com filhos e dependentes de militares. A lógica que se instala dentro dessas escolas [militarizadas] é terrivelmente absurda, porque você passa a ter uma figura de autoridade ali que tem uma autoridade pouco questionada ou com poucas possibilidades de questionamento. 


A gente sabe que há abusos na escola com o modelo minimamente democrático, uma vez que há desigualdade nas relações de poder. Ainda assim aquele que se vê numa situação de abuso tem recursos para a questionar. Agora, como se dá o questionamento da Polícia Militar nas abordagens na rua? Imagine dentro da escola? Como fazer uma discussão de igual para igual com alguém com uma arma na mão, um uniforme todo instrumentalizado pelo poder militar? Então esse é um ponto também, a segurança. Eles dizem que a escola militarizada é mais segura, mas isso não é verdade. Essa polícia que tem esses casos absurdos em número e também nas próprias atitudes... é essa polícia que vai garantir a segurança dos nossos alunos dentro das escolas.


Outro ponto, para concluir, é que a gente ainda não sabe qual vai ser o resultado na formação social desses alunos sob esse modelo, que ensina a obedecer por obedecer, não uma obediência reflexiva. Recentemente, aqui em Goiás, houve um flagrante de alunos na piscina, de uniforme, gritando, fazendo uma saudação extremamente absurda ao governador e ao comandante da polícia, em situação extremamente humilhante. Sem contar as denúncias de abuso sexual. Então, quando você cria uma estrutura extremamente rígida cujos questionamentos são difíceis de serem feitos, você abre um espaço muito propício ao abuso. Eu fico estarrecido em como nós deixamos chegar nesse ponto. 


Hoje, por cima, contando as escolas que aderiram ao projeto cívico-militar, nós temos pelo menos 600 escolas militarizadas no país, contando estaduais e municipais. Mesmo numa mudança de ares, como vamos fazer para desmilitarizar a educação do país? Porque não estamos pautando como fazer essa discussão com a sociedade e, se queremos pensar numa sociedade minimamente democrática, precisamos de uma educação minimamente democrática. Como desmilitarizar as escolas é algo que precisa ser pensado, pautado, discutido e feito.


Assessoria de Comunicação da ADUFPel

Veja Também

  • relacionada

    876 mil pessoas foram atingidas pelas chuvas no Rio Grande do Sul

  • relacionada

    Entidades dão continuidade aos preparativos do 3º Congresso Mundial contra o Neoliberalism...

  • relacionada

    Human Rights Watch denuncia violações de direitos humanos contra crianças em El Salvador

  • relacionada

    Mais de 9 mil estudantes palestinos já foram mortos pelos ataques de Israel na Faixa de Ga...

  • relacionada

    Servidores e servidoras do INSS entram em greve por tempo indeterminado

  • relacionada

    Novos ataques de fazendeiros atingem comunidades indígenas em três estados

Newsletter

Deixe seu e-mail e receba novidades.