Ditadura empresarial-militar teve grande impacto na educação brasileira
Até hoje, o projeto de educação pensado durante o governo
ditatorial serve como base para proposta de desmonte da Educação Pública no
país
Há 55 anos, em 1 de abril de 1964, iniciava-se um período
sombrio e sangrento da história do Brasil. Militares e civis, articulados com o
poder econômico internacional, organizaram um golpe. Tiraram o presidente
eleito João Goulart do poder e iniciando uma ditadura que duraria 25 anos.
Durante a ditadura empresarial-militar, milhares de pessoas foram privadas de
direitos, perseguidas, presas, torturadas e assassinadas. Uma história que
precisa ser sempre lembrada para nunca mais aconteça.
Oficialmente, o regime assassinou 434 não indígenas e 8.350
indígenas, segundo o relatório final da Comissão Nacional da Verdade. No
entanto, há razões para pensar que esse número seja bem maior.
Dos 434 mortos e desaparecidos, 106 eram estudantes
universitários, 12 docentes e 1 técnico-administrativo, conforme o levantamento
do professor de História Política, Milton Pinheiro, da Universidade do Estado
da Bahia (Uneb). Pinheiro foi um dos coordenadores da Comissão da Verdade do
ANDES-SN.
Durante a ditadura, dentro de universidades, foram
instalados sistemas de vigilância e espionagem contra docentes, estudantes e
técnico-administrativos. Essa vigilância resultou em prisões, mortes,
desaparecimentos, privação de trabalho, proibição de matrículas e interrupção
de pesquisas acadêmicas.
Um dos casos que foi objeto de investigação da Comissão
Nacional da Verdade é o do estudante Honestino Monteiro Guimarães, da UNB. Ele
tinha 26 anos e era militante do movimento estudantil. Foi preso quatro vezes,
na última, em 1973, nunca mais retornou. Seu atestado de óbito foi entregue a
família em 1996.
Outro caso foi o de Ana Rosa Kucinski, professora do
Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP). Ela desapareceu em
1974. Foi demitida por “abandono de função”. 40 anos após o sequestro da
professora por agentes da ditadura, a USP anulou sua demissão por abandono de
emprego.
As
universidades durante a Ditadura
Não bastassem as violações de direitos humanos, também
começaram a ser impostas as bases de um projeto de sociedade. As mudanças,
tanto econômicas quanto sociais, não poderiam deixar de lado a educação.
Além da repressão à organização política da comunidade
acadêmica, impôs-se um projeto de educação de acordo com os interesses dos
financiadores do regime.
Duas semanas depois do golpe empresarial-militar, em 15 de
maio de 1964, os ditadores escolheram quem comandaria a educação brasileira.
Flávio Suplicy de Lacerda, que tinha sido reitor da Universidade Federal do
Paraná (UFPR), seria ministro por dois anos.
Lacerda abriu caminho para a construção de um outro projeto
de universidade. Seus fundamentos, infelizmente, até hoje disputam espaço em
nossa sociedade e se apresentam como solução para a educação brasileira.
Atualmente estão sendo retomados de forma mais intensa pelo atual governo de
Jair Bolsonaro.
Para os ditadores e para o ministro Lacerda, era hora de
transformar as universidades brasileiras em grandes escolões tecnocráticos.
Colocar fim aos espaços de debates, de busca pelo conhecimento, e de
mobilizações sociais - algo que não agrada um regime totalitário. O caminho
apresentado pelos ditadores seria traçado por meio de acordos do Ministério da
Educação (MEC) com a Agência dos Estados Unidos pelo Desenvolvimento
Internacional (USAID, em inglês). Esses pactos ficaram conhecidos como Acordos
MEC-USAID.
Atacando todos os níveis da educação, o projeto diminuía
carga horária de matérias de ciências humanas, tornava obrigatório o ensino de
inglês. Buscava também iniciar a privatização do ensino superior. A educação
brasileira, segundo os acordos, deveria ser focada na técnica e servir às transformações
do mercado de trabalho.
Para as universidades, propunha uma reforma, com a ajuda de
consultores estadunidense, que priorizasse as ciências naturais e exatas. Além
disso, que fosse referenciada nas demandas dos empresários nacionais e
estrangeiros, buscando, segundo o presidente Castelo Branco, “servir ao
desenvolvimento nacional”.
A reação aos acordos foi fortíssima. Professores e
estudantes afirmavam que a reforma era, na verdade, uma intervenção
imperialista. O objetivo para modelar a educação às demandas do capitalismo,
dentro da ordem mundial, subjugando-a as grandes potências econômicas.
A União Nacional dos Estudantes (UNE), que fora colocada na
ilegalidade por Lacerda, foi o bastião da resistência aos acordos. O projeto da
ditadura que buscava calar as mobilizações nas universidades acabou por fazer
com que mais pessoas se levantassem contra o regime.
Em 1968, o os estudantes arrancaram um busto do próprio
Lacerda, que já não era mais ministro, e o arrastaram pelas ruas de Curitiba. O
ato marcou a resistência contra os golpes da ditadura na educação. Os
estudantes da UFPR ainda conseguiram impedir a realização do vestibular da
universidade naquele ano, em protesto contra a possível privatização das
instituições de ensino superior.
A
repressão nos corredores das IES
A proibição a respeito do que podia ser lido, pensado e
ensinado não foi suficiente A opção do regime autoritário foi a de aumentar sem
limites a repressão. As universidades não fugiram a essa regra e foram palco de
tristes episódios no período. Perseguições políticas, prisões arbitrárias,
demissões, proibição de reuniões e de leituras de livros foram comuns. Embora
sejam impensáveis em espaços que deveriam ser de troca de conhecimentos e de
formulações coletivas.
Além das proibições, os governantes nomeavam reitores a seu
bel-prazer. As assessorias dos órgãos de repressão atuavam nas instituições de
ensino fiscalizando e denunciando estudantes, professores e
técnicos-administrativos. Esse cenário, junto com atos institucionais e decretos
dos ditadores, foram fundamentais para a repressão nas universidades.
Pressão
pela verdade
Após décadas de silêncio dos órgãos oficiais e de pressão
popular, foi instituída a Comissão Nacional da Verdade (CNV), em 2012. A CNV tinha como objetivo apurar as violações
aos direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988, com foco principal a partir
de 1964. Em 2014, a comissão publicou um relatório com mais de 3 mil páginas
sobre o período de repressão.
Em 2013, o ANDES-SN criou a sua Comissão da Verdade, durante
o 32º Congresso do ANDES-SN, ocorrido no Rio de Janeiro. A comissão teve como
tarefa investigar fatos ocorridos durante a ditadura empresarial-militar contra
docentes universitários, entre os anos de 1964 a 1985. Em 2016, o ANDES-SN
publicou o Caderno 27 - Luta por Justiça e Resgate da Memória. O material é
resultado dos levantamentos e eventos realizados pela Comissão.
Diversas as universidades, entidades e sindicatos também
criaram as suas comissões locais para indagar as atrocidades cometidas pelo
regime militar. Por exemplo, em março de
2018, o relatório final da Comissão da Verdade da USP revelou que a ditadura
atingiu duramente docentes, funcionários e alunos da instituição. O relatório
publicado, composto de 10 volumes, contém documentos que trazem luz aos fatos
ocorridos na época. Por exemplo, a criação de um órgão que exercia o controle
dentro da USP: Assessoria Especial de Segurança e Informação (Aesi).
Instituída em 1972, durante a gestão do reitor Miguel
Reale, a Aesi atuava dentro da reitoria. Tinha como finalidade “realizar
triagem ideológica de alunos, professores e funcionários”. Durante todo o
período, a assessoria produziu e compartilhou informes com diversos órgãos
repressores. Informava as Forças Armadas, com o Serviço Nacional de Informação
(SNI), com o Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops) e com as
polícias.
“Em muitos casos, a vigilância resultou em prisão, morte,
desaparecimento, privação de trabalho, proibição de matrícula e interrupção de
pesquisa acadêmica na instituição”, afirma o documento.
Durante os anos de chumbo da ditadura militar, a
Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) também abrigou uma Aesi. Ligada
ao SNI de Vitória, a Aesi/Ufes funcionou no prédio da antiga reitoria, entre os
anos de 71/83.
A partir de 1983, o órgão mudou de nome, e se tornou uma
delegacia do MEC, e só em 1986 foi extinto, segundo relato da Comissão da
Verdade (CV) da Ufes.
A Aesi monitorava tudo que acontecia dentro da Ufes, desde
os livros que circulavam na biblioteca até os discursos de paraninfo de turmas
de formandos. Viagens de docentes para
estudos e aperfeiçoamentos só eram feitas mediante autorização.
Na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) não foi
diferente. O controle e vigilância ocorriam dentro da universidade. A repressão
na UFSC está registrada no documento apresentado em maio de 2018, por
pesquisadores da Comissão da Memória e Verdade da instituição. A administração
da UFSC participou ativamente ou se fez indiferente no processo de repressão e
perseguição a professores, estudantes e servidores. Conforme o documento, em
1972, foi criado o órgão de Assessoria de Segurança e Informação (ASI) dentro
da universidade.
"Ficou comprovado que o papel de espionagem, denúncia,
censura, repressão e controle ideológico foi assumido em determinados períodos
pela própria administração da UFSC através de membros desta ou do próprio
Reitor, em consonância com os comandos militares e policiais", diz o
relatório.
Em abril de 2018, o Grupo de Trabalho da Comissão da Verdade
da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) também publicou seu relatório. O
trabalho foi realizado em parceria com a Comissão da Verdade em Minas Gerais
(COVEMG). Os grupos analisaram as violações de direitos fundamentais ocorridas
na comunidade universitária entre os anos de 1946 e 1988. Além disso, como se
organizaram os movimentos de oposição à ditadura militar brasileira e o aparato
repressivo na cidade de Ouro Preto.
As
amarras ainda não foram rompidas
A ditadura acabou, mas algumas amarras da repressão e do
projeto de educação formulado naquele contexto ainda não foram rompidas. Ao
contrário, vem sendo intensificadas nos últimos anos, em especial pelo atual
governo federal.
A criminalização de movimentações políticas dentro da
universidade, ainda que de uma maneira menos autoritária, continua. Um dos
exemplos é o projeto Escola sem Partido e todas suas variantes, que buscam
limitar a liberdade de cátedra, entre outros ataques.
Além disso, vários fundamentos do projeto educacional
marcado pelos acordos MEC-USAID ainda são preconizados pelos governos, de forma
fatiada, maquiado, e com outra retórica.
A privatização do espaço público, a redução do papel da
educação à formação de mão de obra para o mercado, são alguns exemplos. Além da
transferência de recursos públicos para as empresas que vendem serviços de
ensino e a precarização e terceirização do trabalho docente e
técnico-administrativo. Essas são algumas das políticas para o ensino superior
que vêm no bojo da contrarreforma do Estado defendida pelos governos desde os
anos 90. E que carregam muitos traços do projeto contido nos acordos MEC-USAID,
e repudiados pelos que lutam em defesa da educação pública.
Os impactos da ditadura empresarial militar ainda são
presentes na vida individual e coletiva de milhares de brasileiros. Por isso,
anualmente, realizam atos para marcar a data, resgatar a memória e cobrar
justiça.
Para
que não se esqueça e para que nunca mais aconteça!
Em 2014, na ocasião dos 50 anos do golpe, o ANDES-SN
entrevistou a professora Ana Maria Ramos Estevão. Ana Maria é uma das muitas
pessoas que lutaram contra a ditadura empresarial-militar no Brasil e que hoje
integraram a base do ANDES-SN. Estudante secundarista à época do golpe, foi
perseguida e presa. Enfrentou os porões da ditadura por três vezes, quando já
era estudante da Faculdade de Serviço Social de São Paulo e militante da
Aliança Nacional Libertadora. Confira abaixo um trecho da entrevista feita com
a docente.
Você
já participava de algum movimento social ou político quando se deu o golpe
empresarial-militar?
Ana Maria: Quando o golpe aconteceu eu tinha apenas 15
anos, mas minha família, especialmente meu pai acompanhava de perto tudo que
acontecia na politica. Lembro-me perfeitamente das marchinhas militares tocando
nas rádios, de meus pais nos proibindo de falar qualquer coisa que parecesse
política, do clima de medo e de insegurança que pairava no ar.
Em 1967, quando cursava o colegial, no Instituto Metodista
de São Paulo, participávamos como estudantes secundaristas de todas as
manifestações, passeatas, atos. Tínhamos contato com vários militantes da
esquerda do movimento universitário ligados à Igreja Metodista, que ofereciam
formação política aos estudantes do Instituto Metodista e da Faculdade de
Teologia de São Bernardo.
Como
era o ambiente universitário naquele período?
Ana Maria: Quando entrei na Universidade Federal de São
Paulo, em 1969, já tinha recém acontecido o Ato Institucional número 5, o decreto
477 estava em vigência. Os Centros Acadêmicos, que eram espaços legítimos e
independente de lutas, protesto e representação dos estudantes, tinham sido
fechados e se tornado Diretórios Acadêmicos, órgãos estudantis controlados e
financiados pelas direções das faculdades, que só tinham permissão para
atividades culturais e recreativas. Já toda a liderança do Movimento Estudantil
tinha sido presa – boa parte no Congresso de Ibiúna -, ou estava na luta
clandestina, mesmo assim usávamos a infraestrutura dos Diretórios para fazer
política, rodar panfletos, conseguir dinheiro com festinhas e bailes para
patrocinar a luta (armada ou não).
Em que
ano e situação se deu a sua prisão?
Fui presa pela primeira vez em julho de 1970, na república
em que eu morava, na Avenida Liberdade, em São Paulo. Foram presas comigo duas
amigas – uma delas tinha envolvimento com a ALN e o ex-presidente da União
Estadual dos Estudantes, que tentou fugir e foi baleado pelos policiais da
OBAN. Fui solta em março de 1971, após comparecer à 2ª Auditoria Militar de São
Paulo para prestar depoimento no processo geral da ALN. Fui presa de novo em
julho de 1972 e agosto de 1973. Nas duas últimas vezes, sofri apenas tortura
psicológica.
Como
foi voltar para a universidade depois dessas experiências?
Todas as vezes que fui presa perdi o ano, o curso naquela
época era anual, mas sempre que saía retornava para faculdade e sempre tive o
maior apoio e respeito dos meus colegas de curso. Neste tempo, o movimento
estudantil estava completamente desbaratado e sob o regime do terror policial,
ainda assim havia muita resistência através da solidariedade manifesta aos
ex-presos políticos. Busquei também refugio na Igreja Presbiteriana com o
Reverendo Jaime Wright, que me acolheu e garantiu minha permanência na
faculdade (com uma bolsa de estudos). Consegui uma bolsa para que fosse estudar
um tempo em Paris, no Instituto ligado ao Paulo Freire. Quando voltei, em 1974,
já no período Geisel, da distensão lenta, gradual e segura, apesar do medo, fui
militar no movimento operário de Osasco, juntamente com o pessoal da Ação
Católica Operária. Terminei o curso em dezembro de 1976.
Você
depôs à comissão da verdade?
Sim, em São Paulo, na Presidência da República, mas meu
depoimento foi apenas no que se referia aos metodistas presos e/ou perseguidos.
Fiz depoimentos na Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, na comissão da
Secretaria da Justiça de São Paulo, e vários outros, já perdi a conta das
entrevistas a jornais e revistas do Brasil a fora. Sempre que me chamam eu vou,
acho que é parte da minha militância, devo isso às gerações que vierem depois
de mim.
Como
foi a experiência?
Quando é para relatar tortura é muito difícil, mas quando é
para fazer a memória da resistência e da luta é bem melhor.
Fonte: ANDES-SN