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Notícia

Entrevista: docente da UFPel fala sobre o negacionismo da ciência

O Brasil passa por uma crise de desconfiança na ciência. Esse aumento do negacionismo deve-se a vários fatores, como, por exemplo, ao aumento das fake news e ao espaço que a religião tem ocupado na vida cotidiana das pessoas. E, neste momento de pandemia, torna-se uma ameaça ainda maior para o controle da expansão do vírus. 


Para falar sobre o assunto, entrevistamos a professora do Instituto de Filosofia, Sociologia e Política da UFPel, Flávia Carvalho Chagas, que analisou por que a ciência deve ser vista como prioridade, bem como a educação e a saúde, e comentou sobre qual o papel da Universidade diante desse cenário. A entrevista foi ao ar no programa Viração do dia 8 de junho. 


Uma pesquisa realizada feita pelo Instituto Gallup e divulgada no primeiro semestre de 2019, mostrou que um terço dos brasileiros desconfia da ciência, 35%, e uma em cada quatro pessoas acha que a produção científica não contribui para o país. Como você analisa isso?

Um elemento importante da pesquisa é que ela nos coloca uma questão, a nós, professores e professoras, pesquisadores e pesquisadoras, especialmente das universidades públicas. Quantos de nós estamos realizando pesquisas que busquem dar o retorno às nossas demandas sociais, buscando transformação social que nós precisamos no país como o Brasil, com mais de 11 milhões de pessoas desempregadas, mais de 5 milhões de pessoas que não têm sequer a expectativa de conseguir um emprego e já desistiram de procurar emprego? 


Problemas no Brasil há muitos, são imensos, e a pergunta é: o que nós estamos fazendo para mudar essa situação? O quanto da produção científica, o quanto do conhecimento científico que é produzido dentro dos nossos muros acadêmicos tem esse retorno efetivo para a sociedade? Acho que esse é um primeiro elemento. Talvez essa desconfiança e o pouco, digamos, valorizada que é a ciência justamente se deva a essa questão. Me lembro, agora, de um texto de uma filósofa, Vandana Shiva, uma indiana, que fala que muito da produção científica que é destinada a tratar de questões relacionadas à produção de alimentos, como monoculturas de soja. Elas, em vez de proporcionar vida, não só das pessoas, dos animais, do meio ambiente, dos recursos naturais, vêm para causar a morte, morte dos rios, morte do solo, morte dos animais, morte das pessoas. 


Então, a pergunta que surge é: essas pessoas que estão contribuindo para produção desse tipo de conhecimento científico de fato trazem ou produzem uma transformação social que nós necessitamos ou não? Ela está a serviço de que ou de quem? Certamente não é do bem viver, do bem viver dessa perspectiva geral que eu coloquei. Então, é um exemplo para a gente dar o ponto de partida para a nossa conversa.


Um outro elemento importante também, que é diametralmente oposto a essa perspectiva, é a questão da diferença que há entre ter uma opinião, ter uma crença, e sustentar uma determinada verdade. Por exemplo, eu tenho uma opinião de gostar de alguma coisa, posso ter uma crença que está baseada em razões. Se eu digo, por exemplo, que a lei da gravidade é válida ou que a Terra é redonda, não é plana. Isso tem nos colocado essas confusões do senso comum, tem atrapalhado bastante, tem contribuído para o tensionamento social. 


Se a gente pensa nas campanhas eleitorais do Trump e do Bolsonaro, que trabalharam muito, demasiadamente, com Fake News, na qual grande parte dos seus eleitores funcionaram quase como robôs digitais a partir desse mecanismo de comunicação, em que as pessoas recebiam mensagem, acham que aquela mensagem é suficiente para sustentar uma determinada crença, reivindicando que essa crença é uma verdade absoluta (sendo que nem a ciência trabalha com essa noção de verdade absoluta). As verdades científicas são verdades provisórias, são verdades falíveis. Então, eu acho que outro elemento importante, que está sendo muito discutido hoje, é a questão da pós verdade. Basta eu ter uma opinião que logo isso é verdade. 


Para concluir, não são só pessoas iletradas ou leigas que manifestam ou manifestaram ao longo da história uma descrença, sua descredibilidade ou desconfiança em relação à ciência. Também, filósofos se manifestaram nessa mesma perspectiva e continuam se manifestando. A pergunta que a gente pode trazer nesse momento é: de que ciência a gente está falando? Todo tipo de perspectiva científica está baseada, está ancorada em perspectivas axiológicas, valorativas, ou seja, em fundamentos ético-políticos. Eu acho que esse é o central da nossa discussão, de que ciência a gente está falando.


Por que a ciência, assim como a saúde e a educação tem que ser prioridade, não só neste momento de pandemia que estamos vivenciando, mas sempre?

Partindo do pressuposto que essa ciência é uma ciência comprometida socialmente com a transformação social que nós desejamos, e levando em consideração a desigualdade imensa que a gente tem, onde milhões têm muito pouco e alguns poucos têm muito, a pergunta que a gente tem que se fazer é: que ciência é essa? Não adianta nada nós ficarmos nos nossos muros, dentro dos muros acadêmicos ou de laboratórios, seja para alimentar os nossos Lattes ou para gerar patentes, produzindo acumulação de capital privado, seja para um indivíduo ou para uma empresa, patenteando marcas. Se a gente pensa na indústria farmacêutica, por exemplo, ou na indústria do agronegócio, a gente vê o quanto a produção de conhecimento não está voltada para o bem viver das pessoas, mas para a morte das pessoas, dos animais, da vida do planeta de modo geral, dos recursos naturais.


A pergunta que fica é: como que a gente vai garantir isso e por que isso tem que ser garantido apenas agora em época de pandemia, e não sempre? Trazendo algumas perspectivas filosóficas, a gente sabe que muitas teorias sustentam que numa democracia todos têm que receber o mesmo tratamento, garantindo a liberdade, a vida, a propriedade privada. O problema é que a gente sabe que são teorias que não têm nenhuma concretização, que não tem nenhuma efetivação na prática. Por quê? Porque, bom, numa democracia a gente não tem igual o tratamento para as pessoas. A gente tem milhões de jovens negros e negras que estão sendo assassinados e assassinadas sem que as pessoas nem fiquem sabendo.


A gente está falando aqui de uma democracia extremamente frágil e que tem que avançar na garantia pelos seus direitos. Uma população que não se alimenta bem, subnutrida ou mal nutrida, que não têm acesso à educação, vai ser uma população totalmente ignorante, que vai viver com medo, medo de morrer, medo de ser assassinada, como é o caso do Brasil, que é justamente. Eu diria que esse é justamente o objetivo do governo, ou destes desgovernos que estão aí pelo mundo afora. Ou seja, uma sociedade mal nutrida, mal educada, é muito mais fácil de ser controlada. Então, se a gente fala de uma democracia, a gente tem que garantir direitos básicos. Saúde, educação, segurança, aposentadoria e direitos trabalhistas são fundamentais para garantir o bem viver da nossa população e garantir também o bem viver das comunidades da nossa população, porque o liberalismo trabalha sempre com a ideia que a sociedade, uma democracia, é composta por indivíduos, numa perspectiva individualista, solipsista, egoísta, e que é de fato a perspectiva que, infelizmente, é majoritária no nosso modus operandi, do ponto de vista social. 


A gente está vendo, com a pandemia, um grande número de ações solidárias e a pergunta é: por que que antes da pandemia, ainda com muitos problemas que a gente tem, o número de mortes no Brasil por vários fatores, e a gente não via esse grande número de ações de solidariedade em relação aos mais necessitados? Então, eu acho que é um desafio para a gente, hoje, pensar que uma população que elegeu quem elegeu, com essa bandeira anticorrupção e segurança, como que essa população não se deu conta que isso jamais seria possível, que jamais vai ser possível se nós continuarmos a defender a EC [Emenda Constitucional] da Morte, ou seja, a EC que institui o congelamento dos investimentos públicos em saúde, educação e segurança por 20 anos. Querer essas duas coisas é algo contraditório, impossível. Querer garantir a segurança com um país extremamente desigual, ignorante e sem acesso aos recursos de saúde pública? Essa conta não fecha. A gente tem que avançar também em relação a esse desafio.


Achas que a pandemia está mudando a forma como a população brasileira enxerga a ciência e a tecnologia? Qual o papel da Universidade diante disso?

Não acho que, infelizmente, a gente esteja mudando a concepção da população em relação à ciência e à tecnologia. A gente vem vendo o grande debate sobre a cloroquina, por exemplo, e o quanto isso ainda está presente nas conversas entre familiares e amigos. Sou um pouco pessimista em relação a isso. A curto prazo, pelo menos, com a atmosfera que a gente está vendo, de muito tensionamento, em que as pessoas não querem nem se perguntar o que é ser de direita ou de esquerda, ou o que é comunismo. Qualquer um que defende políticas públicas vira um comunista. As pessoas não têm claro essas questões todas, então é difícil o debate. Não sou muito otimista em relação à mudança da compreensão da população do papel da ciência e da tecnologia.


Mas, resgatando as questões relacionadas ao papel da universidade, eu falava com um colega meu, que dizia que o problema é a falta de divulgação do que se faz dentro das academias, da universidade. Eu tendo a desconfiar disso também. Pode ser que, em parte, seja um problema de divulgação. Mas, acho também que outro problema, desafio, é realmente encarar nosso papel, nossa função enquanto pesquisadores e docentes das universidades. Se não é algo que devemos encarar como uma transformação do nosso modus operandi


A gente vê pessoas muito mais preocupadas com a atualização de seu Lattes e viagens ao exterior e pouco se vê isso com programas de extensão, por exemplo. Então esse vínculo, essa indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, que está sendo muito discutido agora, na época de pandemia, porque isso vem à tona agora? A gente não fazia extensão antes. E, provavelmente, muitos continuarão não fazendo extensão, porque não há qualquer tipo de controle em relação a isso. 


Acho que vem sendo muito discutido esse tema dentro da universidade, a proposta de novo calendário e de curricularização da extensão (que vem do governo federal). Acho que é uma tarefa que devemos levar a sério, discutir, tensionar. Tensionar o ambiente interno da universidade, buscando a concretização dessas horas de trabalho que a gente deve à sociedade. Porque nós somos pagos, por 20 ou 40h, para poucas horas em sala de aula. As outras horas são para pesquisa e extensão. E a pergunta é: quem faz extensão na universidade? Além disso, que pesquisas são feitas para promover o bem viver da sociedade, levando em consideração os problemas que temos. É uma pergunta que me tensiona também e deveria ser ampliada essa discussão.


Quais você acredita que são as razões para esse negacionismo da ciência que passa a ganhar mais voz no mundo nos últimos anos?

Não são recentes os movimentos anti-ciência. Desde que o humano existe, existe negacionismo. Existem vários exemplos de filósofos, cientistas que foram assassinados pelas suas descobertas. Entre eles, Hipátia de Alexandria, uma das primeiras mulheres a frequentar o âmbito acadêmico formal na Grécia Antiga, que foi assassinada brutalmente, esquartejada. Giordano Bruno, Galileu... Olympe de Gouges, que não tinha diploma mas reivindicava o acesso universal à educação na França na mesma época do Declaração dos Direitos Universais, quando ela publicou a Declaração dos Direitos da Mulher. Foi considerada uma mulher muito perigosa para seu tempo e foi para a guilhotina.


Então, os movimentos de negação da ciência não são recentes. Há duas coisas que são importantes de mencionar. Uma é a questão de que os movimentos negacionistas não são neutros do ponto de vista dos valores morais, éticos e políticos. São movimentos articulados conscientemente para conservar o status quo vigente, para conservar o poder político, o poder econômico. Por exemplo, a indústria farmacêutica, empresas de cosméticos, medicamentos, ou do agronegócio, não estão interessados no bem viver e no direito à vida de todas as pessoas. Estão interessados no quanto os seus bolsos vão estar cheios.


O segundo elemento é que sempre alguma mudança, transformação nos valores políticos, proposição de coisas novas, traz muita insegurança. É muito mais fácil a gente ficar com o velho do que experimentar o novo. 


Por que o negacionismo da ciência é utilizado por determinados líderes políticos?

Além da manutenção do poder político e econômico, do status quo, há uma questão que é tentar trazer confusão na concepção das pessoas sobre o que é melhor ou pior. Por exemplo, uma população não esclarecida, não educada, é muito mais fácil de ser controlada. Muitas campanhas políticas, não só agora, trazem o pânico a partir da ideia da instalação do comunismo. As pessoas não têm a mínima noção do que é comunismo. O quanto estávamos, na época do PT, longe de um Estado Comunista. Que garantisse direitos, à educação, à saúde, segurança, trabalho e aposentadoria.


Assessoria ADUFPel


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