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Entrevista: Maria Lúcia Fattorelli fala sobre a auditoria da dívida pública e o ajuste fiscal no Brasil

“A auditoria está prevista na Constituição Federal e até hoje não foi realizada”

 

No último dia do II Encontro Nacional de Educação (ENE), ocorrido no mês de junho em Brasília, foram realizados painéis temáticos autogestionados pelas entidades organizadoras do evento. Na atividade desenvolvida pelo ANDES-SN, a convidada a palestrar foi a fundadora do movimento Auditoria Cidadã da Dívida, Maria Lúcia Fattorelli. A palestrante realizou um panorama geral da dívida pública externa e interna, dos estados e municípios do país, e convidou os participantes a organizarem núcleos locais da Auditoria Cidadã com o objetivo de auxiliar na divulgação dos estudos e avançar nas investigações.

 

Maria Lúcia é auditora aposentada da Receita Federal. Em 2007, convidada pelo presidente Rafael Correa, ajudou na identificação e comprovação de ilegalidades na dívida do Equador e, em 2015, participou da comissão que investigou fraudes na dívida pública da Grécia. Em entrevista exclusiva para o jornal Voz Docente, Fattorelli falou sobre a dificuldade de implementar a auditoria da dívida pública no Brasil, como funciona esse esquema de “sistema da dívida” e sua relação com o ajuste fiscal que está em curso.

 

Uma parte desta entrevista foi publicada na quinta edição do jornal Voz Docente.

 

Voz Docente (VD): O que é a dívida pública?

Maria Lúcia Fattorelli (MLF): Em tese, a dívida pública seria um complemento de recursos para os orçamentos públicos. Pode ser para o orçamento federal, estadual ou municipal. Teoricamente é aquele recurso que o setor público obtém para completar os seus respectivos orçamentos e garantir investimentos de longo prazo que, às vezes, a arrecadação de um ano não daria conta. Então, o papel da dívida pública seria financiar esses investimentos de vulto e de longo prazo. O problema é que quando a gente começa a investigar o processo da dívida, a gente encontra uma série de mecanismos que não tem nada a ver com essa teoria. Nós chamamos isso de “sistema da dívida”. Nós temos detectado a utilização desse instrumento de endividamento público às avessas, em que a dívida passa a ser um mecanismo de transferência de recurso público para o setor financeiro privado. É o inverso do que deveria ser. Fazer esse discurso sem provar é uma loucura. Então, qual é a ferramenta que prova esse tipo de procedimento? É a auditoria. A auditoria vai buscar os documentos, os dados para elucidar esse processo.

 

VD: É muito difícil de ser implementada essa auditoria no Brasil? Como é o processo?

MLF: A auditoria está prevista na Constituição Federal e até hoje não foi realizada. Então você tem razão de dizer que não é fácil implantar, mas a força da sociedade é muito grande e nós estamos fazendo uma Auditoria Cidadã.  Nós temos, em vários estados, núcleos da Auditoria Cidadã funcionando e estamos pedindo às respectivas secretarias de fazenda dos estados e secretarias de finanças dos municípios, os contratos que justifiquem aquela dívida, e os grupos de professores, estudantes, cidadãos e cidadãs estão analisando esses dados. Em âmbito federal, nós estamos, constantemente, fazendo pedidos de esclarecimento por meio dos nossos militantes ou por meio dos parlamentares. Recentemente, tivemos as operações, o tal de “Swap Cambial”, que absorveu um volume enorme de recursos para cobrir a variação do dólar que o Banco Central fez contratos principalmente com bancos e grandes empresas garantindo para esses a variação do dólar. O dólar estava em 2 e bateu em 4, e o Banco Central teve que pagar essa diferença em cima de centenas de bilhões de contratos. Então como o Banco Central pagou isso? Gerando dívida pública. Nós temos feito pedidos de informações a respeito desse mecanismo. Tem um outro mecanismo que se chama “Operação Compromissada”, que na prática significa a remuneração de todas sobras de caixa dos bancos. Ou seja, o Banco Central troca a sobra de caixa por títulos da dívida pública e remunera os bancos. Um trilhão é quase um quinto do nosso PIB [Produto Interno Bruto]. Então, o estudo da dívida vai muito além de meramente examinar os números e o que está contabilizado aqui e ali. Abarca toda essa compreensão do funcionamento da economia, principalmente da política macroeconômica, da política exercida pelo Banco Central.

 

VD: Os maiores beneficiados são os bancos?

MLF: Sempre. E esse esquema que a gente chama de “sistema da dívida”, essa utilização ao contrário do instrumento de endividamento, não existe só no Brasil. Ele existe no Brasil e se reproduz internamente no âmbito de estados e municípios e também externamente. A gente tem visto esse processo em vários países latino-americanos e europeus.

 

VD: Fizeste parte de uma comissão que investigou os acordos, esquemas e fraudes da dívida pública na Grécia. Como foi esse processo e seria possível fazê-lo no Brasil?

MLF: A iniciativa grega foi muito importante porque partiu do Parlamento e não do governo Executivo. Foi uma comissão formada por cidadãos de vários países da Europa: um africano que já foi especialista da ONU [Organização das Nações Unidas] em Direitos Humanos, um advogado brilhante, um equatoriano que já foi presidente do Banco Central equatoriano na época da auditoria da dívida realizada lá e eu do Brasil. Foi uma honra muito grande fazer parte desta comissão, foi um reconhecimento ao nosso trabalho cidadão, em primeiro lugar, e foi uma experiência ao mesmo tempo muito rica e muito dura, porque uma coisa que todo povo europeu sabe desde que estourou a crise de 2008, é que toda aquela crise que estava sendo jogada em cima da sociedade era uma crise para salvar os bancos. Isso a gente viu em vários cartazes nas mobilizações sociais. O que a auditoria permitiu foi desvendar nos acordos quais mecanismos utilizados para transferir o problema dos bancos para os orçamentos públicos e como transferir o recurso público para os bancos.  Isso, a gente desvendou ao aprofundar auditoria dos acordos encontrados. Então, nessa parte de desvendar os mecanismos, eu tive a honra de contribuir com a nossa experiência.

 

A maior credora da Grécia é uma empresa, uma sociedade anônima constituída sob a forma de sociedade de propósito específico. Uma figura que surgiu com o último Código Civil aqui no Brasil também. Uma figura jurídica que permite a constituição de uma empresa para aquele propósito e quando acaba aquele propósito ela se dissolve. Essa empresa temporária emitiu papéis, porém esses papéis tinham garantia dos países europeus. Com isso, quando você tem um papel que tem garantia pública isso já é uma dívida pública. Esses papéis foram entregues por exemplo para a Grécia, Portugal e Irlanda.  Na medida em que esses papéis são entregues, eles entram como dívida pública. Existe todo um contrato confuso, com centenas de páginas e as informações não são diretas, exige muita dedicação, mas quando você desvenda lá no meio de um parágrafo de mais de 20 linhas com mil assuntos misturados está lá a informação. Então aos poucos a gente vai percebendo essa prática delinquente de detonar com a economia dos países para transferir dinheiro ao setor financeiro.

 

Nós descobrimos esse mecanismo e, por incrível que pareça, esse esquema é muito semelhante com o esquema que nós estamos descobrindo e que está sendo implementado em estados e municípios no Brasil. Vários estados e municípios estão criando uma sociedade anônima independente que emite papéis chamados de debêntures - nome técnico -, nada mais que um papel em que essa empresa assume a responsabilidade de devolver aquela quantia. Ela vende esse papel, por exemplo, por mil reais e assume o compromisso de devolver esse valor daqui um prazo de cinco, dez ou 20 anos, depende. Durante esse período, se propõe a pagar uma taxa de juros. No caso de Belo Horizonte nós localizamos uma empresa que está emitindo milhões de reais de debêntures com a proposta de pagar juros referentes ao IPCA, mais 11%. É um escândalo. Então, é insustentável esse jogo. Não tem negócio nenhum do mundo que dá um retorno desse para o setor público poder honrar esse pagamento, ainda mais porque na hora de vender os títulos que valem mil reais eles não são vendidos por mil, são vendidos com desconto, mas os juros são cobrados sobre mil e dá uma taxa maior ainda. O banco que intermediou essa operação para Belo Horizonte é o BTG Pactual. O banco cujo presidente está preso e que comprou todas as debêntures. Elas nem foram oferecidas ao mercado e tudo isso já é dívida pública do município de Belo Horizonte. O mesmo esquema que nós desvendamos na Grécia, nós estamos vendo em estados e municípios do Brasil. É urgente estancar esse processo porque ele quebrou a economia europeia.

 

VD: Qual é a relação entre os juros da dívida pública e o ajuste fiscal que está acontecendo no Brasil?

MLF: Toda a dívida gerada desta forma, sem contrapartida e com juros abusivos, tem que ser paga. Aí tem todo um aparato legal para justificar o pagamento dessa dívida. No momento em que a economia brasileira travou por conta dessa política monetária de juros altos do Banco Central e esterilização desse R$ 1 trilhão da economia, começou a piorar o seu desenvolvimento, caindo a arrecadação. E como é que continua sangrando o orçamento? Acaba tendo que cortar. O ajuste fiscal é isso. É o corte de direitos sociais na educação, saúde, previdência, segurança, o aumento da privatização e de impostos, a venda de patrimônio para arrecadar. Então todo esse sacrifício é para pagar a dívida. Que dívida?  Essa dívida montada em fraudes, mecanismos financeiros, ilegalidades e ilegitimidades. A ferramenta que vai jogar luz nesse processo é auditoria e a gente tem que envolver a cidadania nessa auditoria, porque eu não acredito em solução de cima para baixo, eu acredito na solução e na mudança que vem da base da sociedade consciente. É nesse sentido que nós temos procurado contribuir.

 

Assessoria ADUFPel

Foto: Assessoria ADUFPel

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